O relatório do Correspondência foi conhecer de perto duas realidades diferentes, envolvidas no mesmo contexto daquele que já é considerado o pior acidente climático já ocorrido no Brasil. Em São Leopoldo (RS), uma das cidades mais atingidas pelas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul, nem mesmo o prefeito Ary Vanazzi escapou de ter sua casa inundada.
Ele fala da dificuldade de ter que sair do local onde morou com a família nos últimos 18 anos. Historiador, o prefeito diz sentir a extensão da dor de seus 100 mil conterrâneos que também tiveram que abandonar suas casas e vidas após a enchente recorde que deixou quase metade da cidade, com cerca de 240 mil habitantes, submersa. “A vida assim é muito difícil, estou falando de mim, mas estou imaginando a vida dos meus vizinhos também. Você chega em casa e não sobra nada, é uma dor no peito, é um desespero total”, disse o prefeito. Apesar da destruição, Vanazzi demonstra confiança na reconstrução do município, que é um importante pólo universitário e industrial da região metropolitana de Porto Alegre.
A 150 quilômetros de São Leopoldo fica Capão da Canoa, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, principal destino turístico de verão do estado. Todos os anos, os 23 municípios vivenciam um aumento populacional na alta temporada com turistas que passam alguns dias e também proprietários de casas de veraneio. Nos últimos dias, porém, mesmo com dias nublados e frios, o movimento nas cidades é alto, devido ao êxodo da capital gaúcha, por conta das enchentes.
A prefeitura estima que o número de habitantes tenha saltado dos habituais 63 mil para cerca de 200 mil. Amauri Germano, prefeito da cidade e também presidente da Associação dos Municípios do Litoral Norte, comentou sobre os desafios enfrentados no acolhimento aos moradores de rua e se há infraestrutura caso parte da população decida permanecer na região litorânea. “Nosso orçamento não estava previsto para receber todas essas pessoas que vieram. Essas pessoas que estão no nosso município vão acabar recorrendo à assistência e à inclusão social, e aí o investimento vai dobrar”, observou.
Abaixo estão trechos das entrevistas:
Prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi
Qual é a situação de São Leopoldo hoje?
Temos 180 mil pessoas afetadas, 100 mil pessoas que abandonaram as suas casas e 34 mil casas submersas. Somos o terceiro município do estado em número de pessoas atingidas por enchentes. Temos 13 mil pessoas hospedadas em 102 albergues que são monitorados pela prefeitura, além de 22 feitos pela iniciativa privada, em igrejas. Também estamos fornecendo alimentos para quem solicitar.
Qual é a expectativa de que as águas recuem?
Estamos instalando seis bombas para escoar a água, se conseguirmos instalar até a próxima sexta-feira, se tudo isso funcionar teremos menos água nos bairros. Mas a Defesa Civil do estado alerta que na quarta, quinta e sexta poderemos ter um grande volume de chuva no estado.
Você perdeu sua casa na enchente?
Minha casa ainda está debaixo d’água, ainda não parei para pensar nisso. Na verdade não consegui fazer nada, estou esperando a água baixar para tentar organizar. Mas sei que perdi tudo: os móveis, as roupas dos filhos, a minha história, as fotografias, tudo o que tinha na vida estava dentro desta casa. Tenho uma profunda sensação de dor. Estou falando da cadeira de quem também está perdendo tudo, sentindo em primeira mão. Já vi muitas inundações onde moro, mas nunca as vi tão grandes antes.
Quantos anos você morou lá?
Morei neste bairro por 40 anos, nesta casa por 18 anos. Já havíamos enfrentado enchentes, mas em nenhuma delas a água chegou aos três metros, como desta vez. Foi muito rápido e não deu tempo de salvar nada, só consegui salvar o gato e o cachorro das crianças. E a sua família? Eles estão superando, sou casado há 25 anos, com a Daniela, tenho um filho de 43, um filho de 36, um filho de 28, uma menina de 15 e um menino de 6. O menino está sofrendo muito , ele não levou nenhum brinquedo, a Minha menina perdeu tudo que tinha da festa de 15 anos e está muito triste. Estou hospedado em uma casa em outro bairro, uma casa pequena, meio camping, não tem coisas (eletrodomésticos). Também ganhamos muito com as pessoas. A vida assim é muito difícil, estou falando de mim, mas estou imaginando a vida dos meus vizinhos também. Você volta para casa e não sobrou nada, é uma dor no peito, é um desespero total.
E o nível do rio?
Estamos instalando bombas que devem melhorar a situação, vão nos ajudar muito a agilizar a retirada de água. O que realmente queremos é trabalhar para salvar o nosso povo, como fizemos durante a Covid.
O que foi discutido com o governador e ministro Pimenta?
As decisões mais urgentes foram buscar bombas para Canoas, Porto Alegre e São Leopoldo, para escoar as águas. Outra decisão será ajudar os municípios a completar a documentação para obter recursos. Outra questão é que temos tido problemas na recolha de alimentos, temos tido problemas em levar comida suficiente para quem está em casa de um amigo. Outro problema é que estamos tendo problemas para comprar alimentos. Nossos mercados estão tendo dificuldades para fornecer esses alimentos: arroz, feijão e outros. Em todos os mercados estamos enfrentando problemas de abastecimento.
O que pode ser feito em relação a este problema de abastecimento?
O governo federal traz esses alimentos seja por aviões ou por corredores de caminhões para trazer esses alimentos para o nosso estado, as estradas como a BR 116 em São Leopoldo são complicadas porque a água não está diminuindo, o nível do rio dos Sinos está diminuindo em torno de 2,5 centímetros por hora, é muito pouco, é muito lento. Na reunião de hoje solicitamos que o governo federal transporte alimentos para o estado.
E a resposta do governador Eduardo Leite?
O governador também anunciou algumas transferências, com o pix indo para as contas dos atingidos, como a proposta do governo Lula de repassar os recursos diretamente para as famílias, para as pessoas, para o CPF, sem passar pela burocracia estadual. O governo do estado fez a sua parte, mas ainda está aquém do que precisamos. Ele está desempenhando o papel de governador, mas por enquanto as respostas às questões urgentes ainda são muito poucas. Por enquanto, apenas o governo federal enviou recursos.
Você ainda está esperançoso?
Sim, vamos reconstruir a cidade, tenho certeza, temos muita determinação e força de vontade. As pessoas não precisam perder a esperança. Se tivermos vida, conseguiremos. Precisamos recuperar a esperança de que temos muita solidariedade. Meu pai dizia que Deus tem muito mais para dar do que para tirar.
Prefeito de Capão da Canoa (RS), Amauri Germano
De repente, um fluxo muito grande de pessoas migrou para o Litoral Norte. Como as prefeituras estão lidando com essa situação? O governo estadual já forneceu assistência financeira ou outros recursos?
O que temos visto e ouvido, em relação aos municípios que foram diretamente afetados (pelas chuvas), é que haverá apoio do governo estadual e federal para ajudar essas famílias que perderam tudo. Mas os municípios que não foram afetados também sofrem consequências, porque o nosso orçamento não estava previsto para receber todas essas pessoas que vieram. Essas pessoas que estão no nosso município vão acabar recorrendo à assistência e à inclusão social, e aí o investimento vai dobrar. Alguns ficarão e utilizarão nossa rede de ensino, onde já tínhamos quase encerrado a lista de espera. Agora a lista cresceu novamente. Tem criança com autismo, tem encaminhamento médico e tem idoso. Tudo isso será analisado pelo nosso grupo técnico e também pelo Ministério Público, que avaliará se eles permanecerão onde estão ou retornarão, e se o município terá que abraçar essas causas. Não teremos recursos adicionais do Estado, segundo as informações que tenho, apesar das minhas reivindicações.
E o governo federal?
O governo federal, da mesma forma, vai ajudar quem está dentro do decreto de calamidade pública, o que não é o nosso caso, porque não fomos afetados. Precisamos, talvez, analisar em qual decreto poderíamos nos enquadrar. Teremos que parar de investir em algumas áreas para priorizar o cuidado daquelas que são atualmente necessárias. Todo mundo que vem aqui não tem culpa, ninguém está falando isso. Temos que abraçar nossos irmãos porque poderíamos ser nós. Como não fomos afetados da mesma forma, temos que estender a mão. Mas estamos lidando com dinheiro público, onde somos fiscalizados 24 horas por dia, então temos que ter muito cuidado e usar todos os mecanismos legais possíveis para ajudar aquelas pessoas que chegam aqui, nos abraçam e começam a chorar dizendo que perderam tudo. Só precisamos encontrar uma maneira de ajudar.
O que poderia ser feito, pelos governos estadual e federal, para ajudar municípios que não foram afetados, mas que recebem moradores de rua?
Acho que o governo do estado tem que repensar a sua política pública e o seu plano de ação no estado. Os municípios, principalmente do Litoral Norte, que sempre triplicam no verão e, no inverno, dobram, precisam de um projeto para ver o que é realmente importante para nós porque, muitas vezes, há recursos que chegam para algumas áreas que não são. são tão interessantes. Precisamos de apoio na área da saúde, para que cheguem mais recursos, para que haja um projeto mais aprofundado sobre isso. Também para que o governo do estado possa atuar na área da educação, porque a responsabilidade do estado é o Ensino Médio, mas também os anos finais do Ensino Fundamental. Cada vez mais, querem repassar isso aos municípios. E isso também nos coloca contra a parede porque não temos pernas para tudo isso. Em termos de medicação, também é importante abrir um pouco o escopo e prestar uma assistência melhor, estando mais próximo dos prefeitos. A secretaria estadual de turismo poderia olhar para os municípios (do litoral) e também criar um projeto para que pudéssemos receber ajuda de quem já sabe gerar emprego e renda, utilizando nossas lagoas. O governo federal agora precisa responder mais rapidamente às solicitações. Quando fazemos encomendas de uma escola, o governo demora de seis meses a um ano para dar “ok” à construção de uma escola. Dê maior atenção também aos cursos técnicos, que têm mais e focam em educação, saúde e transferências assistenciais.
Que logística você está usando para receber as pessoas?
Aqui já devemos ter atendido cerca de 5 mil pessoas que pedem apoio na procura de alimentos e roupas, tanto para crianças como para adultos, jovens e idosos. Isso nos levou a montar um espaço de recepção na escola Leopoldina para atender as pessoas. Criamos um fluxo para receber doações e, ao mesmo tempo, despachar o que fosse necessário para as famílias que chegaram lá das enchentes. As pessoas estão em abrigos feitos pelas igrejas. Também fizemos parceria com o cartório, onde o responsável também disponibilizou um ponto na academia para obtenção de documentos gratuitos.
Quantas pessoas estão na cidade atualmente?
Devemos ter 200 mil pessoas que vieram para cá, além dos moradores de rua, porque tem apartamentos e casas. Isso por um lado é positivo, gera emprego, renda, o comércio funciona mais e isso facilita que muita gente tenha emprego. E isso não é diferente de outros municípios da região, todos receberam muita gente, não tanta gente como nós no sentido de que também tem gente que veio porque tem casa.
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