Pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (UC), nos Estados Unidos, analisaram os genomas de centenas de parasitas da malária para identificar quais variantes genéticas são mais propensas à resistência aos medicamentos. Os resultados, publicados na revista Science, mostram novas formas de usar a inteligência artificial para prever a dificuldade do tratamento e priorizar, de forma mais eficiente, e alimentar testes de novos medicamentos contra a doença. Além do impacto direto nesta condição, as descobertas têm potencial para serem aplicadas no combate à resistência a outras patologias infecciosas e até ao câncer.
Elizabeth Winzeler, professora da UC, destacou que muitas investigações sobre a resistência aos medicamentos tendem a analisar um agente químico de cada vez. “O que conseguimos foi criar um modelo capaz de compreender a resistência aos medicamentos antimaláricos em mais de uma centena de compostos diferentes”, disse o especialista. Winzeler acrescentou que, devido à conservação de muitos dos genes envolvidos na resistência, os resultados do estudo têm um grande potencial para aplicação em outras doenças além da malária”.
A malária, transmitida por mosquitos, afeta especialmente a população das regiões tropicais e subtropicais. Apesar dos avanços significativos no controlo da doença, esta continua a ser uma das principais causas de morbilidade e mortalidade, especialmente em África, onde ocorrem 95% das mortes por esta patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A resistência aos medicamentos tornou-se um grande obstáculo no controle da doença, principalmente devido à disseminação de cepas do parasita Plasmodium falciparum, agente causador, que se tornam resistentes aos tratamentos.
Winzeler, que também é diretor do Malaria Drug Accelerator, reforçou a urgência de novos tratamentos. “No entanto, o financiamento para investigação e desenvolvimento de medicamentos para a doença ainda é bastante limitado”. Ela também destacou o papel essencial da comunidade científica. “Graças a esta colaboração, o estudo foi capaz de criar um recurso valioso que pode facilitar a identificação e priorização de novos tratamentos antimaláricos”.
Pesquisa laboratorial
O estudo analisou os genomas de 724 parasitas da malária que foram modificados em laboratório para resistir a 118 compostos diferentes, incluindo tratamentos estabelecidos e medicamentos experimentais. Ao identificar padrões em mutações associadas à resistência, os investigadores conseguiram observar características genéticas distintas, tais como a localização das mutações dentro dos genes, que podem ser utilizadas para prever quais as variações que podem estar envolvidas na dificuldade do tratamento.
“Nosso objetivo final é usar o aprendizado de máquina para nos ajudar a entender quais compostos são mais vulneráveis à resistência, para que possamos acelerar os estágios iniciais do desenvolvimento de medicamentos e, assim, colocar novos tratamentos em ensaios clínicos mais rapidamente. eficiente”, explicou Winzeler.
Álvaro Madeira, especialista em saúde pública e coordenador do curso de medicina do Idomed, em Juazeiro do Norte, no Ceará, detalha que, na malária, os desafios incluem a detecção precoce de resistências e a eficácia limitada de novos medicamentos. “No câncer, a resistência se manifesta pela plasticidade celular e por mutações genéticas que tornam os tumores refratários à quimioterapia. Em ambas as condições, a heterogeneidade genética representa um desafio, pois impede o desenvolvimento de tratamentos universais. os altos custos das terapias individualizadas também limitam intervenções eficazes”.
O estudo também revelou como as redes genéticas interagem para mediar a resistência entre diferentes classes químicas de medicamentos, auxiliando na busca por medicamentos que superem essa resistência. Os pesquisadores apontaram ainda que a novidade pode ter aplicação em outras doenças.
A resistência aos medicamentos não é exclusiva da malária e é um desafio crescente em muitas doenças infecciosas, além de representar uma questão central no tratamento do cancro. Isto ocorre porque a maquinaria genética que regula a resistência aos medicamentos é semelhante em diferentes patógenos e até mesmo em células humanas. Um exemplo disso é a proteína PfMDR1, presente nos parasitas Plasmodium falciparum, responsável pelo transporte de substâncias dentro das células, incluindo a expulsão de medicamentos de seus locais de ação. Curiosamente, o PfMDR1 possui uma versão equivalente em humanos, e mutações nesta proteína atuam na resistência a tratamentos tumorais.
Novas demandas
“A resistência é um problema global, não só na malária, mas também nas infecções bacterianas e até no cancro. No futuro, a investigação precisa de investir em ferramentas que monitorizem o surgimento da resistência e desenvolver medicamentos que actuem através de mecanismos mais difíceis de controlar. O grande desafio é que quando o parasita ou uma célula cancerígena desenvolve resistência, as opções de tratamento tornam-se mais limitadas. Na malária, por exemplo, a resistência aos medicamentos pode espalhar-se rapidamente numa população, o que pode impedir a quimioterapia. para identificar a resistência precocemente.”
Filipe Piastrelli, infectologista e coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar (SCIH) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
Infecções bacterianas também são uma preocupação
Recentemente, a revista The Lancet divulgou a carga global da resistência bacteriana aos antimicrobianos 1990-2021 e as previsões até 2050. Em 2021, estima-se que 4,71 milhões de mortes foram associadas à resistência bacteriana aos antimicrobianos (RAM), das quais 1,14 milhões delas são diretamente atribuíveis ao RAM. As tendências de mortalidade têm variado ao longo dos últimos 31 anos, com uma redução de mais de 50% nas mortes por RAM entre crianças com menos de 5 anos de idade, mas um aumento de mais de 80% em adultos com mais de 70 anos de idade. Em 2020 e 2021, houve queda nas mortes por doenças infecciosas não relacionadas à Covid. Até 2050, as mortes por esta causa deverão atingir 1,91 milhões, com um aumento mais acentuado entre os idosos. As regiões mais afetadas serão o Sul da Ásia, a América Latina e as Caraíbas. No melhor cenário, entre 2025 e 2050, 92 milhões de mortes poderiam ser evitadas com um melhor tratamento de infecções graves e acesso a antibióticos, e 11,1 milhões de mortes evitadas com o desenvolvimento de novos medicamentos para infecções por Gram-negativos.
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