Primeiro veio a explosão de centenas de pagers. Um dia depois, a mesma coisa aconteceu com um grande número de walkie-talkies.
Explosões no Líbano durante dois dias consecutivos mataram pelo menos 37 pessoas e feriram mais de 2.450, incluindo centenas que perderam olhos, dedos e mãos.
O governo libanês e o Hezbolá — o partido político islâmico xiita apoiado por Irã e considerada uma organização terrorista por Israel, pelos EUA e pela União Europeia – atribuiu os ataques a Israel.
Na quinta-feira (19/9), o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, descreveu os ataques com dispositivos eletrônicos como “puro terrorismo” e os chamou de “crimes de guerra ou, pelo menos, um declaração de guerra“.
“Deus é misericordioso e evitou mais mortes e feridos”, declarou Nasrallah. “Vários pagers estavam fora de serviço ou desligados. Alguns não haviam sido distribuídos e ainda estavam armazenados.”
Alguns funcionários do governo ocidental apoiaram a versão de que os israelenses instalaram explosivos nos dispositivos antes de serem entregues ao Hezbollah.
Os especialistas estimam que este ataque complexo parece ter sido meticulosamente planejado ao longo de meses. E até quinta-feira, ainda não estava claro se a série de ataques havia terminado.
O que já se sabe é que Israel está “a abrir uma nova fase na guerra”, concentrada na fronteira norte do país, como confirmou em comunicado o ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant.
“O centro de gravidade está a ser deslocado para norte, com a deslocação de forças e recursos”, acrescentou o ministro em declarações proferidas na base aérea de Ramat David, no norte de Israel.
Ao mesmo tempo, as Forças de Defesa de Israel (IDF) anunciaram o envio da sua 98ª Divisão, considerada uma unidade de elite, no norte do país.
Esta divisão fez parte da ofensiva israelita à cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza, entre o início de dezembro do ano passado e abril deste ano. Os seus pára-quedistas e a sua divisão de comandos irão unir-se à 36ª Divisão sob o Comando do Norte, no meio das crescentes tensões entre Israel e o Hezbollah.
Os especialistas indicam que isto aumentará significativamente a capacidade ofensiva de Israel na sua fronteira norte, enquanto duas outras divisões continuarão centradas em Gaza.
Confrontos armados em ambos os lados da fronteira
Israel e o Hezbollah têm trocado ataques quase diariamente desde Outubro do ano passado, quando Israel declarou guerra ao Hamas na sequência da incursão deste grupo palestiniano no seu território.
Os ataques forçaram a evacuação de civis em ambos os lados da fronteira – norte de Israel e sul do Líbano, sede do poder do Hezbollah.
O correspondente da BBC em Jerusalém, Daniel de Simone, informou que os ataques de foguetes e drones lançados pelo Hezbollah causaram o deslocamento de cerca de 60 mil israelenses.
“No início desta semana, o governo israelita fez do regresso das pessoas deslocadas às suas casas um objectivo fundamental da guerra”, destacou De Simone. “E Gallant deixou claro que a ação militar será a única opção se a diplomacia falhar.”
As palavras de Gallant não deixaram margem para dúvidas sobre a posição do seu governo. “Precisaremos de consistência ao longo do tempo. Esta guerra requer muita coragem, determinação e perseverança.”
O Ministro da Defesa de Israel destacou também que os objectivos da guerra israelita na sua fronteira norte são “claros e simples: devolver os residentes das cidades do norte às suas casas, sãos e salvos”.
‘O que é necessário’
Estas não são as únicas declarações que indicam uma escalada que, segundo os especialistas, poderá resultar numa guerra total contra o Hezbollah.
Numa breve declaração após a segunda rodada de explosões, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse: “Eu disse que devolveríamos os residentes do norte [de Israel] sãos e salvos para suas casas e é exatamente isso que faremos.”
Por sua vez, o chefe das Forças de Defesa de Israel, Herzi Halevi, advertiu com retórica semelhante que o seu país possui “capacidades muito maiores” que ainda não tinham sido utilizadas na luta contra o Hezbollah.
“Estamos muito determinados a criar as condições de segurança que permitam aos residentes [do norte de Israel] regressarem às suas casas, às suas cidades, com um elevado nível de segurança”, declarou, “e estamos dispostos a fazer o que for necessário para o conseguir”, disse Halevi num vídeo publicado pelas IDF.
Israel não costuma comentar as suas operações de inteligência no estrangeiro e não reivindicou nem negou a sua ligação às explosões de pagers e walkie-talkies no Líbano. Mas várias fontes afirmam que a agência de espionagem israelita, a Mossad, está por detrás desta nova ofensiva.
O episódio foi amplamente condenado por vários líderes mundiais, incluindo o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.
O primeiro-ministro libanês, Najib Mikati, classificou os ataques como uma “grave violação da soberania libanesa e um crime em todos os aspectos”.
O Alto Representante da União Europeia (UE) para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, detalhou em comunicado que discutiu a situação com o Ministro dos Negócios Estrangeiros libanês, Abdallah Bou Habib.
“Embora os ataques pareçam ter sido seletivos, causaram danos colaterais incontáveis e indiscriminados entre a população civil”, destacou Borrell. “Entre as vítimas estão várias crianças”.
O funcionário da UE acrescentou que os ataques recentes poderiam “colocar em risco a segurança e a estabilidade do Líbano e aumentar o risco de escalada na região”.
“A União Europeia apela a todas as partes interessadas para que evitem uma guerra total, que teria graves consequências para toda a região e para além dela”, concluiu.
Medos de um conflito mais amplo
Embora o governo israelita mantenha o seu habitual silêncio após os ataques a dispositivos móveis no Líbano, os comentadores aproveitaram a oportunidade para expressar as suas hipóteses, segundo o analista de segurança da BBC, Paul Adams.
Os jornais israelitas estão cheios de análises sobre como irá evoluir o conflito latente entre Israel e o Hezbollah e o que poderá acontecer a seguir.
O veterano analista de assuntos árabes, Ehud Yaari, diz que os ataques criaram uma “oportunidade única” para Israel agir de forma decisiva contra o Hezbollah e os seus extensos arsenais de mísseis.
Neste momento, os sistemas de comunicação do grupo estão fora de serviço e muitos comandantes de campo estão feridos, alguns gravemente.
“A situação atual não se repetirá num futuro próximo”, garantiu Yaari no site de notícias israelense N12. “Em poucas palavras, o Hezbollah está atualmente na sua pior situação desde o fim da Segunda Guerra do Líbano em 2006.”
Adams confirmou a declaração do governo israelense sobre a mudança do seu foco militar para o norte.
“Mas a guerra em Gaza continua e não se sabe como Israel pretende explorar aquele que é considerado um momento raro, cheio de oportunidades”, concluiu o analista da BBC.
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