Há mais de meio século, o balneário Kamenoyu, no Japão, tem conseguido resistir às circunstâncias dos tempos e das crises, oferecendo o tradicional serviço de banho público japonês com água de poço aquecida a lenha. Porém, no dia 30 de maio fechou as portas com um aviso melancólico afixado na entrada e reproduzido na conta oficial do X (antigo Twitter).
“Perdi a vontade de continuar a operar devido a tantos incidentes tristes, cheguei ao meu limite”, escreveu o proprietário do último estabelecimento do género que funcionava desde 1967 na cidade de Zama (a cerca de 40 km de Tóquio).
O banheiro foi outra vítima do Kasuhara (do inglês assédio ao cliente), tipo de abuso, cada vez mais comum, cometido por clientes.
Um inquérito realizado pela central sindical UA Zensen, que representa 1,8 milhões de trabalhadores dos setores dos serviços, revela que 46,8% dos cerca de 33 mil entrevistados sofreram abusos por parte de clientes durante os últimos dois anos. Além do abuso verbal e da intimidação, a vítima é muitas vezes forçada a curvar-se sobre as mãos e os joelhos, enquanto encosta a cabeça no chão.
Chamado dogezaeste tipo de pedido de desculpas é usado em Japão em casos extremos, quando o perdão é implorado.
Tratados como deuses num país que preza pelo bom atendimento, os clientes mimados estão cada vez mais intolerantes, afirma o professor Hiromi Ikeuchi, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Kansai, em entrevista à BBC News Brasil.
Até o início da década de 1960, os consumidores no Japão eram esmagadoramente a parte mais fraca. Em 1968, foi promulgada a Lei Básica de Defesa do Consumidor, quando foram estabelecidos os princípios básicos da política do consumidor. Com o economia O Japão está em ascensão e o mercado está cada vez mais competitivo, as empresas colocaram o cliente no pedestal, alimentando a expectativa do consumidor de exigir cada vez mais.
“Ironicamente, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que elevaram os padrões de serviço, as empresas criaram um ambiente onde é provável que ocorram insatisfação e até mesmo abuso e assédio”, disse Ikeuchi à BBC News.
Ela cita como exemplo o que está acontecendo atualmente no serviço de entrega em domicílio, que por si só já é uma comodidade para o cliente. Mas quando a mercadoria chega 5 minutos antes ou depois do prazo de entrega especificado, muitas pessoas reclamam.
“À medida que o mundo se torna mais conveniente e os serviços mais abrangentes, as expectativas dos consumidores aumentam.”
Segundo Ikeuchi, atualmente as pessoas estão cansadas, estressadas e menos tolerantes.
Os anos de pandemia de COVID-19 eles apenas ajudaram a piorar tudo, com muitas pessoas não conseguindo mais controlar sua raiva. Com isso, não aceitam os menores erros cometidos por terceiros, resultando no aumento das reclamações.
Antigamente, se houvesse uma reclamação, a primeira coisa que o consumidor fazia era ligar para o atendimento ao cliente de um telefone fixo. Hoje, as reclamações podem ser apresentadas imediatamente e gratuitamente em qualquer lugar.
A divulgação de mídia social tornou os insultos comuns, mais persuasivos e impactantes, e com efeitos devastadores. Isso gerou novos problemas, como bullying corporativo e destruição de marca, antes mesmo de a própria empresa tomar conhecimento do caso. No momento em que você descobre que algo está errado, a situação já pode ter se tornado incontrolável.
Muitas companhias de seguros oferecem hoje “seguros Kasuhara“, e têm sido muito procurados. A Sompo Japan Insurance, por exemplo, recebeu 20 mil empresas inscritas desde o lançamento do produto, que inclui um help desk com advogado para ajudar os clientes a lidar com abusos.
O Governo Metropolitano de Tóquio criou uma força-tarefa para discutir contramedidas. Para os representantes empresariais, eles devem proteger não apenas os trabalhadores, mas também as atividades empresariais. Mais de 80% das pequenas e médias empresas de Tóquio têm até 20 funcionários e lutam para lidar com esse tipo de situação.
O governador da província de Aichi, Hideaki Omura, expressou recentemente sua intenção de trocar informações com Tóquio para criar um decreto que incluiria disposições sobre penalidades e diretrizes para evitar abusos de clientes.
O desafio será customizar políticas de contramedidas para cada empresa e loja com base nesta portaria. Especialistas dizem que é difícil determinar o que constitui uma reclamação legítima e quando se torna assédio.
Para saber a real situação, a Central Sindical Rengo realizou um inquérito a 1.000 pessoas, incluindo 675 directamente afectadas e 325 cujos colegas de trabalho foram vítimas. Quando questionados sobre a impressão que tinham sobre o número de casos nos últimos cinco anos, 77 disseram acreditar que o número tinha diminuído, enquanto 369 responderam o contrário.
Das 675 pessoas que foram vítimas de Kasuhara516 (76,4%) disseram que suas vidas mudaram devido ao abuso: sentiam-se deprimidos quando iam para o trabalho, doentes física e mentalmente e não conseguiam se concentrar no trabalho ou dormir adequadamente.
O Ministério do Trabalho, Saúde e Bem-Estar do Japão lançou um livreto informativo para conscientizar as pessoas sobre os malefícios causados pela intolerância e todo tipo de desrespeito, destacando que reclamar é diferente de ofender.
Muitas empresas japonesas hoje estão repensando como deveriam ser as relações com os clientes e como as regras deveriam prevalecer. Diante do crescente abuso de passageiros contra funcionários, tripulantes e atendentes das estações, a empresa ferroviária JR East criou a Política de Abuso e Assédio, especificando os atos que se enquadram na categoria de Kasuhara.
Caso ocorram agressões físicas ou mentais, comportamentos obsessivos e cobranças excessivas de serviço, a empresa ferroviária deixa claro que poderá entrar em contato com a polícia e tomar outras providências por meio de seu departamento jurídico. Mas, de acordo com um responsável ferroviário, quando a empresa é parcialmente responsável por um atraso de comboio, muitas vezes é difícil tomar uma decisão de retaliação.
A JR East atua na região metropolitana de Tóquio, região de Tohoku e arredores, e criou um manual para seus mais de 70 mil colaboradores lidarem com passageiros inconvenientes e não comprometerem a segurança e a pontualidade, reconhecidas mundialmente como uma das qualidades do sistema de viagens. Transporte japonês.
Em média, a empresa registrou cerca de 30 casos de Kasuhara por mês nos horários de pico. São casos como o de um funcionário que foi agredido ao pedir a um passageiro que mudasse do transporte especial (verde) para o transporte normal, conforme indicado no bilhete que possuía.
Jogo de cintura
O brasileiro Romeu Kenichi Funatsumaru foi responsável por treinar funcionários estrangeiros em uma rede de lojas de conveniência durante um ano. Ele lembra que as relações sociais no Japão são verticais, e nessa relação de poder o cliente pensa que está muito acima de quem o atende. “Eles descontam suas frustrações no funcionário, que não pode – e não deve – retaliar”, diz ele.
Romeu diz que colocou em prática muito do que aprendeu quando trabalhou como comissário de bordo em empresas brasileiras na década de 1990.
“Não confronte e nunca diga não ao cliente. Deixe-o desabafar e, quando estiver um pouco mais calmo, leve-o para um ambiente onde ele se sinta mais confortável para conversar”, afirma.
Romeu não se ajoelhou para pedir desculpas como na humilhante dogezamas ele repetiu a expressão inúmeras vezes “sumimasen” (Sinto muito), esteja o cliente certo ou não.
O caso mais grave que presenciou na loja que administrava foi quando um cliente jogou o cachorro americano (empanado de linguiça no palito) em um funcionário que acabara de fritar o lanche. “Não foi a reação de uma pessoa normal”, lembra ela.
Estima-se que mais de 80 mil estrangeiros trabalhem atualmente em meio período nas filiais das três principais lojas de conveniência do Japão, representando 10% dessa força de trabalho. O número aumentou cerca de 1,4% em relação a cinco anos atrás e continua a tendência de crescimento.
Por causa de sua aparência física e do japonês fluente, Romeu nunca foi tratado como estrangeiro. No entanto, as pessoas que treinou podem tornar-se alvos fáceis para clientes abusivos e xenófobos.
Natasha Jacomini é um exemplo. Nos quatro anos em que trabalhou ao volante, foi vítima de um passageiro duplamente intolerante. “Consegui lidar com a situação, mas naquele dia não foi possível”, lembra ela, considerada a primeira taxista brasileira na região de Tokai.
Após confirmar o trajeto até o destino da viagem, o passageiro começou a insultá-la quando o táxi já estava em movimento, desconfiando do trajeto. A viagem continuou e os insultos aumentaram, e piorou quando o passageiro viu a carteira de identidade profissional do brasileiro.
Pelo nome descobriu que ela era estrangeira, e ao abuso moral acrescentou comentários discriminatórios. “Isso meio que me pegou! Mas quando essa passageira me disse que estrangeiro não é gente, parei o táxi, pedi para ela descer e chamei outro táxi para que ela pudesse continuar viagem.”
O episódio foi registrado pela câmera instalada no veículo e não houve consequências – nem reclamação formal do passageiro nem punição ao taxista. Contudo, ficou claro que trabalhar no setor de serviços no Japão não é fácil. “Muitos clientes tratam os funcionários com arrogância, falam duramente sem motivo. Todo mundo se acha superior a todo mundo”, lamenta Natasha.
Para o professor Hiromi Ikeuchi, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Kansai, a criação de manuais e normas é importante em vários aspectos. Além de padronizar as respostas e proteger o colaborador, permite ao consumidor entender a extensão das obrigações da empresa.
Tirar o cliente do pedestal leva tempo, pois é como reinventar a cultura de consumo do Japão ao conceito de “pagar o preço justo”, sem direito a serviços excessivos além desse valor.
Excesso de ‘pregos’
O Japão é frequentemente associado a uma cultura coletivista, onde o grupo e a harmonia são valorizados.
Por esta razão, as pessoas hesitavam em expressar o seu desconforto ou insatisfação pessoal.
No entanto, com o recente “boom do abuso”, as pessoas parecem ter sido dominadas por uma súbita onda de insatisfação e queixam-se de quase tudo.
“Eu pessoalmente não gosto disso. Não acho que uma sociedade saudável deva ser assim”, diz o professor Ikeuchi.
Num país onde o coletivo importa, há uma série de condutas no Japão que hoje são classificadas como abuso e assédio.
São tantos que até cunharam o termo “hará-hara” (assédio de assédio). No verão é muito comum ouvir falar do “ea-hara”, que ocorre quando uma pessoa regula a temperatura do ar condicionado do local de trabalho, ignorando a vontade da maioria.
A tendência é que os homens coloquem o aparelho em temperatura baixa, deixando os colegas reclamando do ambiente gelado.
Agora o “aru-hara” é o termo usado quando alguém é forçado a beber, ignorando os desejos de outras pessoas e até mesmo o nível de tolerância da pessoa ao álcool. É uma situação que pode ocorrer em eventos empresariais ou confraternizações entre subordinados e seus superiores.
Outro abuso com toques japoneses é “bura-hara”, sobre comentários de personalidade feitos com base no tipo sanguíneo da pessoa.
Em vez do sinal, muitos japoneses perguntam sobre o tipo sanguíneo e associam-no a qualidades (e defeitos). Tem também o desconforto causado pelo cheiro (sume-hara) e cigarros (sumô-hara).
Neste universo de “hará“, existem tipos com impactos profundos nas vítimas que exigem que a sociedade trabalhe em conjunto para combatê-los, como o assédio de poder e o assédio sexual, e agora também o abuso de clientes.
Para lidar com o problema de Kasuhara, o professor Ikeuchi enfatiza que o primeiro passo é entender seu conceito e contexto. O consumidor também tem papel fundamental na mudança desse cenário.
“A primeira coisa a fazer é abandonar o sentimento de privilégio, de que o cliente é Deus e de que é VIP”, afirma.
Você gostou do artigo? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê sua opinião! O Correio tem espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores através do e-mail sredat.df@dabr.com.br
como fazer emprestimo consignado auxilio brasil
whatsapp apk blue
simular site
consignado auxilio
empréstimo rapidos
consignado simulador
b blue
simulador credito consignado
simulado brb
picpay agência 0001 endereço