Premiada, na semana passada, com o título de industrial do ano pela Federação das Indústrias de Minas Gerais, a CEO da Sigma Lithium, Ana Cabral, comanda a primeira grande empresa a extrair e industrializar lítio no Brasil. E consegue fazer isso de forma sustentável, sem barragens de rejeitos, algo raro na mineração. As exportações começaram em julho do ano passado. Desde então, a empresa ganhou destaque internacional, vendendo, por exemplo, para a sul-coreana LG, uma das maiores fabricantes de baterias do mundo. O lítio é um insumo essencial para a produção de baterias, como as utilizadas em carros elétricos.
Em conversa com o Correio, Ana Cabral conta como conseguiu o feito do processamento sustentável do minério. A empresa é a primeira no mundo a ter o chamado “quíntuplo zero” em sua cadeia, produzindo sem pegada de carbono, sem utilizar água potável, sem barragens de rejeitos, utilizando energia suja ou produtos químicos nocivos.
Para Ana, o caso da Sigma comprova o potencial do Brasil para liderar a transição para uma economia verde, mesmo com a resistência e o ceticismo encontrados fora do país. “Essa superpotência verde Brasil não interessa à concorrência”, ressaltou. A CEO também destacou os desafios enfrentados pelas mulheres em cargos de liderança e em setores econômicos, rejeitou a ideia de venda da empresa — que chamou a atenção das montadoras — e apontou os desafios da falta de investimento em geociências no país. Ana acredita que pode haver “uma tabela periódica inteira” no Brasil, mas faltam estudos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
A Sigma Lithium, empresa brasileira, entrou recentemente no mercado de lítio, que tem fortes concorrentes. Como foi esse processo?
Quando estudamos a indústria, a Austrália, a China, a mecânica dos carros elétricos, ficou claro que era preciso agregar valor nessa cadeia — e é aí que o Brasil se diferencia. Já temos capacidade para atender quase um milhão de carros. Há muito mais carros elétricos do que o Brasil fabricará nos próximos 15 anos. Estamos falando de um mercado que visa basicamente viabilizar a descarbonização no Hemisfério Norte. Temos parcerias com China, Coreia do Sul, Europa, Japão e Estados Unidos.
A extração de lítio, assim como a mineração em geral, é considerada um setor de alto impacto ambiental. Mas você produz lítio de forma sustentável. Qual é a diferença?
Resolvemos os grandes problemas da indústria do lítio no mundo, e é por isso que estamos nadando com calma. Zero carbono, zero barragens de rejeitos, zero água potável — usamos água do rio Jequitinhonha que é esgoto bruto sólido —, zero produtos químicos nocivos e zero energia suja. O processo industrial que realizamos é extremamente inovador. É a única fábrica no mundo que processa lítio desta forma. Empilha resíduos secos e não utiliza ácidos. Portanto, esse resíduo é comercialmente utilizável. Doo dois terços para a construção de estradas e o restante vendo por US$ 200 a tonelada. A ideia é chegar ao desperdício zero. Ainda não chegamos lá.
Como esse processo difere do que acontece no resto do mundo?
Na cadeia normal, você mói o minério e separa o lítio com ácido. Procuramos processos de separação de minério com características semelhantes. Por exemplo, o diamante, que também fica preso em blocos. Mas você não vai moer um diamante. Aprendemos que para o lítio parte do valor também é a integridade da molécula, por causa da próxima fase de processamento. Quanto maior a molécula, mais você economiza. Então criamos um processo de descolamento usando centrifugação acelerada. Este é o filé mignon do lítio global. Prova nove: já estamos na terceira remessa cobrando um prêmio. US$ 1.300 a tonelada. Não é uma “pedra”.
Isso se traduz em benefícios para os compradores?
Coloquei a bola na frente do gol para o trabalho do refinador. Cabe à LG, por exemplo, que é produtora de baterias, não precisar se preocupar com a qualidade do que recebe da refinaria. Nosso produto é o da mais alta qualidade industrial do mundo. Assim ajudamos o cliente a economizar dinheiro. É um produto mais eficiente e isso se traduz em rentabilidade. No cobre você vê muito isso, pela sua pureza e características. O cobre concentrado representa apenas 25% do valor do cobre refinado. No lítio, por ainda ser um ‘bebê industrializado’, estou fazendo 9%. Entrego um produto que economiza de 20% a 30% para o cliente.
E qual foi o momento de início das exportações no ano passado?
Tivemos que desbravar o território, porque não era um território produtor conhecido. Foram necessárias 10 remessas para estabelecermos isso. Havia muito ceticismo por parte dos concorrentes. Por isso Raul (Jungmann), o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), foram tão parceiros no primeiro embarque, que foi o Brasil contra o mundo. O vice-presidente (Geraldo) Alckmin foi. Foram o governador (Romeu) Zema (de Minas Gerais) e o governador (Renato) Casagrande (do Espírito Santo).
Houve resistência?
O que se dizia lá fora era que o lítio nunca sairia daqui. E esquerda. E começou a sair em quantidade. Isso foi em julho, nem há um ano. Isso mostra que podemos entregar no país. Ninguém quer esse Brasil verde, bacana e produtor. Esta superpotência verde, o Brasil, não interessa à concorrência. Dois meses depois, em setembro, começou como um relógio: 22 mil toneladas por mês. É um produtor em escala. Nós estamos aqui para ficar.
A Sigma chamou a atenção de grandes montadoras como Volkswagen, BYD e Tesla. A venda da empresa chegou a ser cogitada. Ainda existe essa intenção?
Não existe mais essa discussão aqui. Colocamos um ponto final no assunto no início do ano. Fomos abordados, não saímos para vender a empresa. Esta joia foi abordada, e o que aconteceu? O ambiente era diferente. O preço do lítio estava caindo acentuadamente. Para nós não fez sentido, porque vamos dobrar o volume e executamos muito bem. Como somos de baixo custo, se o preço for baixo, se o preço for alto, no nível atual ainda vamos dobrar de tamanho, e depois aumentar mais um terço.
Você também destaca os programas sociais da empresa. Qual a importância disso para o seu modelo de negócios?
Durante quatro anos tive que justificar aos meus acionistas porque vou gastar tanto em iniciativas sociais. Eu não tinha receita, fui buscar receita ano passado. Durante a pandemia, as pessoas estavam morrendo de fome. Montamos uma rede de segurança. Trouxemos empresários locais. Só nós (Sigma Lithium) servimos três milhões de refeições por ano. São 270 mil refeições por mês e não desmontei o programa até hoje. Também oferecemos 36 mil toneladas de desinfetante hospitalar em cada um dos anos de pandemia, uma demanda do próprio município.
Qual foi a lógica do programa de microcrédito criado pela Sigma, de até R$ 2 mil?
Em 2021, vimos um problema maior: as pessoas que viviam de pequenos serviços foram confinadas. Em 2022, quando (o comércio) começou a reabrir de forma consistente, ficou claro para nós que teríamos que incluir as pessoas de forma produtiva. Apoio humanitário, proteção social e inclusão produtiva. Tem que ter inclusão produtiva e trabalhar com capacidades culturais, que as pessoas já sabem fazer hoje. E você fornece o financiamento. O programa conta com 2 mil mulheres. Você os treina não para fazer as atividades, mas para cuidar do dinheiro. Dez mil concessões de microcrédito criam 15 mil empregos.
A região do Vale do Jequitinhonha também sofre com a seca. A empresa está atuante nessa frente?
Fazemos essas estruturas de irrigação que retêm água na horta, na agricultura familiar. Temos 1.400 deles. Seis mil empregos. E água para todos. Aqui o problema da água é diferente. Eles não têm água. Todo mundo tinha aquela pobreza do século passado. Uma pessoa em carro de bois indo buscar água na cisterna coletiva. Pensamos: por que não compramos e instalamos caixas d’água nas casas de cada um dos nossos vizinhos? São 3 mil. O programa de caminhão pipa muito legal do governo vai lá e enche as caixas.
Você ocupa o cargo de CEO em um setor que ainda é dominado por homens. Que desafios você enfrentou?
Eu tive que quebrar o mercado. Você tem que estar muito melhor, então o que vou fazer de diferente aqui? Agora, ganhei o prêmio de Industrial do Ano em Minas Gerais. Antes de mim, apenas uma mulher ganhou este prêmio. Minha equipe de geociências tem 60 mulheres. A equipe de mineralogia contava com 70 mulheres. E nunca perdemos a capacidade de nos indignarmos com a pobreza. É esse olhar, que eu acho que tem um lado de ser mulher. Meus investidores são todos homens. São investidores de impacto, todos homens, mas existe uma perspectiva de investidor responsável. Quando começamos, não existia nem ESG.
Com os desastres climáticos que estamos vendo agora, você acha que a Sigma, empresa brasileira, dá exemplo para o mundo?
Olha, sim, porque é uma forma de fazer. O clima está se desviando dos padrões históricos. Você mede isso, não é um achômetro. Não tenho caneta para resolver isso. Então, o que fazemos? Tente mostrar um super exemplo. Elevamos a fasquia. Ainda hoje somos apanhados por causa do histórico de mau comportamento do setor, mas tudo bem. Como podemos mudar isso? Falou-se muito do Brasil, que o Brasil tem barragem, que o Brasil não tem cuidado ambiental. Ele terminou. Tapete vermelho: o Brasil oferece o lítio mais sustentável do mundo, ponto final. Somos a única empresa do nosso setor convidada pela ONU para a COP. Vamos lá falar sobre isso desde 2019, quando ninguém falava em COP.
O que ainda falta no mercado de mineração brasileiro?
Você tem que correr riscos. Sondagem, perfuração geológica, desenvolvimento geofísico, geociências. E as geociências no Brasil são subfinanciadas. Deve haver toda a tabela periódica neste país, mas não sabemos. O Brasil é menos estudado geologicamente que a África, porque já existem 100 anos de mineração privada, mineração de risco. No Brasil, até 1997, a mineração era estatal. E o Brasil acompanha um movimento de investimento privado na mineração que não completa 30 anos. O que está faltando? Apetite por esse capital de risco para investimento em geociências. É um trabalho arriscado, porque pode não haver minério. Pode não justificar uma indústria de escala.
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