O porteiro Paulo Alberto da Silva Costa deixou o Complexo de Bangu, no Rio de Janeiro, após três anos de prisão. Foi na noite de 12 de maio do ano passado. Ele foi libertado por decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) após ser identificado como autor de crimes em 62 ações penais.
Na semana passada, Carlos Edmilson da Silva voltou para casa em São Paulo depois de 12 anos atrás das grades, condenado a mais de 170 anos de prisão por 12 estupros. Ele foi chamado de maníaco e criminoso em série. Mas um exame de DNA comprovou que o material genético coletado das vítimas não era dele. Na verdade, era consistente com o de um companheiro de prisão que cumpria pena por outros estupros. Decisão da 5ª Turma do STJ, sob relatoria do Ministro Reynaldo da Fonseca, anulou, em maio, as condenações de Edmilson.
Igor Ortega passou três anos preso por dois crimes que não cometeu. Ele estava a 24 km do local do crime, na Zona Norte de São Paulo, onde foi baleado ao sair de uma festa.
Ao ser levado ao hospital com ferimentos graves, foi identificado erroneamente por uma foto (tirada com o celular de um policial) como um jovem que, em Guarulhos (SP), havia roubado um carro e tentado tirar outro de um policial militar , com quem os autores do crime trocaram tiros. Novas evidências demonstraram que Igor não poderia estar no local dos crimes e que as lesões sofridas no mesmo dia e horário dos fatos eram incompatíveis com a dinâmica dos dois roubos pelos quais foi condenado. Com base nas novas provas, Igor foi absolvido pela Justiça de São Paulo.
O que esses três casos têm em comum? Eles são negros, da periferia e cumpriram pena por terem sido reconhecidos pelas supostas vítimas apenas com base em foto, sem qualquer outra prova que levasse à elucidação dos casos. Eles são vítimas de erros no sistema de justiça.
Levantamento feito pelo gabinete do ministro Rogério Schietti, do STJ, mostrou que, em 2023, das 377 decisões da Justiça que revogaram a prisão provisória ou absolveram réus por não reconhecê-los como autores de crimes, 281 — ou 74,6% do total – basearam-se na existência de erros de identificação através de fotografias.
Segundo o estudo, em 2023, foram analisados 4.942 processos em que a defesa questionou o procedimento adotado no reconhecimento pessoal de suspeitos, resultando em 268 julgamentos e 4.674 decisões monocráticas.
Em 377 destes julgamentos, a prisão provisória foi revogada ou absolvida. “Via de regra, foi possível observar que a utilização de imagens fora do padrão, extraídas de redes sociais e desatualizadas, vinha acompanhada de práticas pouco confiáveis. Algumas delas: falta de descrição prévia do autor, aparecer (exibição de um única foto), enviando previamente uma foto via WhatsApp ao reconhecedor e repetindo o procedimento judicial —do qual, longe de conseguir corrigir a nulidade, pessoas inocentes ficam desprotegidas”, afirma Schietti.
Segundo o CPP, a vítima ou testemunha descreve previamente a pessoa a reconhecer e o suspeito, se possível, deve ser colocado ao lado de outras pessoas que se assemelhem a ele. Se necessário, devem ser tomadas medidas para que a pessoa a reconhecer não veja quem faz o reconhecimento.
Segundo o ministro, o incumprimento das regras previstas no artigo 226.º do Código de Processo Penal, que estabelece procedimentos de reconhecimento de suspeitos, é uma garantia para toda a sociedade. “É importante deixar claro que respeitar as regras do artigo 226 do CPP não representa uma garantia apenas para o suspeito, mas também para o trabalho da polícia e da Justiça, pois o processo está menos sujeito a nulidades, e para a própria vítima, que está mais interessada na identificação e responsabilização criminal do verdadeiro autor do crime”, sustenta o ministro.
Nos casos que foram apreciados pelo STJ em 2023, desembargadores e desembargadores entenderam que o artigo 226 do CPP forneceria apenas uma “recomendação”, de modo que o descumprimento do dispositivo legal não seria motivo para declarar a nulidade do evidências coletadas.
A criminalista Flávia Rahal, diretora da organização Innocence Project Brasil, que atuou nos casos de Carlos Edmilson e Igor Barcelos, afirma que, muitas vezes, o trauma da vítima ou testemunha prejudica o reconhecimento. Portanto, outras evidências precisam ser levadas em consideração na hora de denunciar ou julgar um suspeito. “Para uma pessoa que acabou de vivenciar ou testemunhar um evento traumático – como um roubo, um estupro – é muito difícil ter clareza exata sobre as características do agressor”, explica ela.
“Há muitos estudos que mostram que a memória humana não é uma câmera, ela registra imagens com lacunas. Se a pessoa que foi vítima, que foi testemunha, se depara com fotografias não padronizadas, antigas, tiradas sem critério, nós saber A partir daí o caminho para o erro é muito claro”, acrescenta. (Leia entrevista com a criminalista Flávia Rahal na página 2).
A jurisprudência do STJ segue precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e aponta que o artigo 226 do CPP deve ser respeitado e serve como garantia mínima ao suspeito e o procedimento tem valor probatório relativo e não pode, por si só, conduzir certeza sobre o autor do crime.
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